Sou Caetano

Me lembro do dia em que o carreto veio da casa de nossa tia para trazer a mudança de onde morávamos para cá, em São Caetano.

Era 1999, e estávamos eu e minha mãe no portão quando a kombi partiu levando o que tínhamos – um fogão, uma geladeira, uma televisão, uma máquina de lavar roupa, dois móveis para a sala, um colchão de solteiro e roupas. Aquela mudança era para mim (ali com 11 anos) toda feita de expectativas e saudades. Prendi o choro mas depois chorei, pensando que o ano 2000 chegaria para mim como uma vida nova em uma casa nova, em uma escola nova, com amigos novos. Uma vida nova nessa cidade linda que é São Caetano do Sul. Viemos embora. E naquela noite dormimos no chão, não tínhamos mesa nem armários na cozinha, mas estávamos muito felizes. Era um renascimento que comemorávamos à nossa maneira.

E renascemos.

Hoje sou outro e o mesmo menino, e a circunstância é outra mas a sensação é a mesma: expectativa, nostalgia e gratidão a Deus e às pessoas que acompanharam nossa jornada nesta cidade. E saudade. De nossos vizinhos, dos comerciantes do Centro, dos professores da Jorge Street e dos amigos da Microblau, dos professores de espanhol do Idalina. Do Espaço Verde Chico Mendes e do Cemitério ali ao lado onde foi enterrado meu primo bebê. Das visitas do meu avô até o dia de sua morte. Da gravidez da minha irmã até o abraço que ganhei da Mellissa hoje, mais de nove anos depois. Dos hospitais, das pracinhas e avenidas. Da Biblioteca. Da fundação Pró-Memória. Da Visconde, da Goiás, da Roberto Simonsen. Dos ônibus circulares Barcelona e Gerty, meus transportes por anos e anos. Do cheiro da fumaça da fábrica da Vigor. Da GM. Dos terminais de ônibus e da Estação. Das Casas Bahia. Da rua Perrella. Da fachada do Cinema Central. Do ponto de táxi. De minha calçada com lajotas soltas. Do barulho do trem de manhã, do barulho do trem à noite, do sacudir das paredes com o barulho do trem de madrugada. De ouvir da janela as mensagens de aviso se a CPTM tinha algum problema. E dessas paredes e desse chão de madeira e desse teto que nos acolheu por tantos anos. Da vida dessa cidade. Das árvores da minha rua. Das pessoas. De todas as pessoas. De quem nós fomos, de quem nós queremos ser. E de cada uma das alegrias, tristezas, momentos, lembranças, acontecimentos e histórias que vivemos neste apartamento, nesta rua, bairro, cidade.

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fachada do cinema central, em frente à minha casa na Rua Perrella, bairro Fundação.

 

Obrigado, São Caetano do Sul.

Até breve, Pequeno Gigante querido.

 

Pequenas memórias nas ilhas

Não sei se lembro bem

De quando fui a São Vicente.

A água era quente

e os musgos eram como em Paquetá

– que tinha pedras que pareciam corcovas de camelo,

onde alugamos bicicletas, andamos no paralelepípedo e fomos felizes.

Paquetá tinha um cheiro diferente de praia que não sei explicar.

Não sei se lembro bem, mas foi naquele dia em São Vicente que visitamos um ponto na beira da praia onde havia uma fonte, já velha, numa praça suja de azulejos quebrados. Era um dos lugares mais antigos do Brasil.

Senti que aquele era um lugar importante.

Me senti importante por estar ali, perto da história.

(quebrada ou velha, era história e eu gostava dela)

Não sei se visitei primeiro São Vicente ou Paquetá.

Mas a vida na ilha parecia leve

e a harmonia do clima, da paisagem e de nossos ânimos

fazia parecer que sim, existiam lugares no mundo onde há alegria simples e plena.

Eu criança amava o mar em sua onipotência de espumas e sal amargo.

Não sei se lembro bem, mas era criança e queria entender temas complexos da vida.

Eu vivia na terra. Conhecia a praia. Mas queria viver o mar.

Não sei se visitei primeiro São Vicente ou Paquetá.

Mas me peguei ao acaso pensando

sobre essa ideia de se viver numa ilha, sobre a infância

e sobre aqueles dias de que não me lembro muito bem em Paquetá.

Confidência do Itabirano – Carlos Drummond de Andrade

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
ANDRADE, C. D. Poesia completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

Criança

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, – e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente…

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

[Cecília Meireles]

na primeira metade dos anos noventa

Na hora do almoço, por acaso, fomos a um restaurante por quilo que fica em uma casa, sendo o buffet na sala, a cozinha na cozinha mesmo e o quintal e o segundo andar transformados em salão com mesinhas.
 
Ao entrar, reconheci imediatamente um cheiro muito característico.
 
Quando era pequeno, lá por volta dos meus 5, 6 anos, passava muitas horas em casa, só eu e minha irmã. Minha mãe, à época, vendia Yakult, empurrando aqueles carrinhos pelos bairros de São Bernardo. Ficávamos sozinhos apenas alguns dias, não todos, e éramos crianças, brincávamos felizes com as almofadas do sofá e empilhando a enciclopédia em castelos e prédios, espalhando milhares de coisas pela sala. Sendo crianças até que alguma hora da tarde eu (sempre) ficava angustiado porque percebia que estava passando o dia e, sinceramente, muitos dias eu achava que minha mãe nunca ia voltar para casa – ficava desesperado. Chorava e minha irmã não tinha o que fazer para me tirar daquela angústia. Mas minha mãe sempre voltava antes do pôr-do-sol.
 
Nessa época, lá em São Bernardo, na rua Cândido Portinari, onde morávamos, havia um pensionato, que todos chamavam de “Casa da Dona Carlota”. Dona Carlota, como o nome prenuncia, era uma senhora fofinha, acredito que viúva e portuguesa, que tinha um grande sobradão de muitos quartos. Tudo era limpo e organizado – eu tinha certo medo de mexer em algo na casa da Dona Carlota. Lá, na cozinha, acho que foi a primeira vez na minha vida em que mexi com fósforos. Para ajudar a acender um baita fogãozão industrial que ela tinha (e que deve ser um fogão industrial de quatro bocas comum, mas que eu via como algo “diretamente do mundo da lua”). Claro, não devo ter ajudado nada, mas as crianças têm essa inocência de se achar muito importantes quando ajudam em tarefas pela primeira vez.
 
Dona Carlota era uma boa senhora.
 
Não sei quantos eram os dias da semana em que ficávamos sozinhos em casa, nem sei por quanto tempo ficávamos. E isso nem importa pra história que estou contando. Mas me lembrei dela, hoje, ao sentir o cheiro do feijão do restaurantinho. Em alguns desses dias, que também não sei dizer quantos, ela aparecia em casa, com marmitas em tupperwares embrulhadas em panos de prato, e nos passava pela grade da janela da sala.
 
A comida era muito boa e o cheiro era exatamente aquele, o feijão do restaurantinho de hoje, o feijão da Dona Carlota de mais de 20 anos atrás.
 
Pode parecer uma bobagem, mas tenho poucas lembranças vivas da minha infância. Essa acendeu hoje. E, com toda essa distância do tempo e do esquecimento, e sabendo que elas não representam a maioria dos dias, me lembrei de algumas cenas muito felizes, de dias felizes naquele sobrado na rua Cândido Portinari, onde morávamos eu, minha irmã e minha mãe lá na primeira metade dos anos noventa.

algumas peças que sobram

Quando era pequeno, sempre desmontava meus brinquedos.
(Não apenas os meus, mas também alguns da minha irmã e não apenas brinquedos, porque sempre que conseguia também desmontava algumas coisas da casa).

Quando desmontava as coisas, percebia que lá dentro existiam muitas pecinhas, muitas coisas que se encaixavam, outras eram soldadas, outras eram moldadas exatamente daquele jeito, e tinha algumas que eram parafusadas, as minhas preferidas, porque tinha menos risco de quebrar.

Mas quebravam. Os parafusos espanavam ou se perdiam, as junções plásticas quebravam, eu esquecia como encaixar alguma peça que acabou ficando fora e eu nem percebi. Era mais fácil para mim o processo de desmontar e descobrir do que o de remontar e unir as coisas. Foi assim com muitos rádios e carrinhos e controles remotos e até com algumas bonecas da minha irmã, que eu desmontava em membros e enfileirava, pernas para cá, braços para lá, cabeças do outro lado.

Quando comecei a estudar eletrônica, me encantava poder construir circuitos e montar placas eu mesmo, poder fazer o processo inverso daquilo que fiz durante toda a minha infância. Eu poderia construir e, quem sabe, em algum lugar, uma criança curiosa poderia desmontar e revisitar os encaixes e parafusos e soldas que fiz.

Mas não fiz soldas nem encaixes nem parafusei muitas coisas. Passei pela eletrônica como passei pela adolescência, me lancei para o mundo da palavra e aqui estou hoje, desde então, trabalhando de alguma forma o conhecimento, as ideias, a escolha das palavras certas.

Descobri que não faço as melhores soldas, que meus encaixes não são perfeitos e que, na verdade, nem parafusar parafuso muito bem. Mas com as palavras, ainda que muitas vezes soltas, ainda que muitas vezes desalinhadas, ainda que muitas vezes com o encaixe ruim entre uma e outra, talvez me sairia melhor, eu pensei.

Mas mesmo com as palavras existem quebras, as junções se perdem, as soldas soltam, e às vezes, no final, sobram fora do discurso muitas palavras não ditas, como aquelas peças que eu nunca soube onde encaixar.

As peças que eu nunca soube onde encaixar sempre existiram como as palavras que eu sempre deixo sobrar no discurso. Cada uma tem seu espaço e momento e muitas vezes elas não foram encaixadas na hora certa. Sem elas, como nas coisas físicas, nada funciona como deveria. Às vezes, nem funcionar funciona.

Mas ainda assim eu continuo desmontando as coisas para tentar entender como elas funcionam, e tento guardar os parafusos e memorizar os encaixes, tento escolher as palavras e tento não quebrar as coisas. Mas eu quebro as coisas. As coisas quebram. As peças sobram. As palavras faltam.

Quando pequeno, guardava algumas peças que sobravam em caixinhas, esperando que no futuro pudesse desmontar novamente e, ao re-remontar, encontrar onde deixei de encaixar ou parafusar algo.

Hoje ainda tenho caixinhas onde guardo essas peças que sobram. Onde guardo essas palavras que sobram.

Como um inventário de lembranças para tentativas de encaixar de novo essas peças que sobram e eu não sei como encaixar.

Como um relicário de lembranças de palavras e coisas que eu não soube montar, eu não soube encaixar, eu não soube resolver.

Como lembranças vivas de algumas tantas peças soltas que existem em mim (e eu não sei se sei ou saberei como encaixar).

Voltando pra casa

Voltando pra casa eu cruzo com pessoas felizes e tristes, com casais apaixonados e outros que se ladeiam e outros ainda que só andam juntos sem se acompanhar.

Voltando pra casa eu passo por calçadas bem feitas e calçadas esburacadas e ando pelas ruas e não atravesso nas faixas e não espero os semáforos e não olho para os dois lados.

Voltando pra casa eu pego o metrô e nele tem todo tipo de gente muitas vezes amontoada e poucas vezes com espaço para algo além de respirar.

Voltando pra casa eu vou de trem e nele tem ambulantes rádio pilha calendário coca fanta água e crentes cegos cantores meninos doentes senhoras senhores crianças olhares pessoas sonolentas outras fedendo e algumas indo encontrar ou procurar ou descobrir ou conquistar o seu amor.

Voltando pra casa passam árvores e prédios passa carro e coletivo e passa táxi passa até uns transviados tem chapados sem contar os abandonados e o senhor do carrinho de churrasco que dá fome a todos em frente à estação.

Voltando pra casa passo rio e passo ponte passo pedestre passo carro outros carros e mais carros e tem carro em todo canto até mesmo no portão que abre ou pra eles ou pra mim quando chego em casa.

Voltando pra casa chego a meu apartamento e está vazio, são apenas portas e janelas e alguma madeira no chão e nos tantos móveis e no rodapé que nunca terminei de pintar.

Voltando pra casa eu queria te encontrar lá. Queria sonhar sua presença todos os dias e sentir o seu perfume entre minhas coisas. Ser feliz com você, e apenas isso, sem padrões nem fronteiras, sem dores nem segredos exceto os compartilhados.

Voltando pra casa passo por um mundo de concreto, de acontecimentos, de lugares, de coisas, de pessoas, de necessidades. Mas nesse caminho, sem você, tudo que vejo é passagem.